ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL
ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL/RIO GRANDE DO SUL
Crônica da decolagem de uma ideia:
As Caravanas da ALB | RS - Lajeado
E la nave va.
Quatro horas da manhã, as primeiras quatro horas de setembro de
2018. Pairava um sereno chuvoso no Marco Zero da capital dos gaúchos, fir-
memente encrustado na importada, e ao mesmo tempo nativa, Fonte Tala-
vera. Neste horário, muitas pessoas circulavam pelo patrimônio histórico do
centro, entre a Prefeitura, o Largo Glênio Peres e o indefectível Mercado
Público. Basicamente trabalhadores descarregando de caminhões os produtos
que fazem a alegria de consumidores de todas as classes. Poderiam ser en-
contrados desde ossobuco portenho até vieiras chilenas.
Em meio aos atos inerentes do início de um sábado na cidade, podia se
ouvir um burburinho alegre e intenso: eram as cabeças iluminadas dos Aca-
dêmicos Imortais da Academia de Letras do Brasil, seccional Rio Grande do
Sul. Estava por ter início a Caravana Literária da ALB | RS, que tinha como
ponto de chegada a terra nativa dos Ibiraiaras, atualmente uma colonização
de portugueses, alemães e italianos: Lajeado.
A nau (van) partiu desejando o mais breve “tragar” dos 110 km que nos
distanciava do destino: o Colégio Estadual Presidente Castelo Branco. Lá, nos
aguardavam os demais Acadêmicos Imortais, tendo como anfitrião o coorde-
nador local da caravana, o escritor Adriano Turelli Spezia. Todos estavam
munidos de um dos mais valorosos desígnios humanos: a literatura.
Ao chegar, topamos com o esquadro do interior gaúcho que nos remete
ao próprio lar. Uma linda e larga praça verdejante tendo ao centro um core-
to que mexeu com nossas fantasias. Um dos quadrantes era todo ocupado
pela enorme frente do colégio. Os escritores se encontram espraiando uma
felicidade inconteste e a certeza de seu protagonismo na história da cultura
e dos jovens e intelectuais que estavam por nos encontrar.
As tradicionais escadas dos secundários nos levavam ao terceiro andar,
cada um de nós congelando as barrigas em um misto de ansiedade e concen-
tração sobre o que encontraríamos no auditório. Os professores e as profes-
soras faziam a corte nos mirando como aqueles que supostamente trariam a
boa nova para uma geração bombardeada pelas redes sociais.
A ritmada ampliação dos marcos da porta da sala na medida que nos
aproximávamos davam a impressão de estarmos dentro da película O Ilumi-
nado, do genial diretor Stanley Kubrick.
Portas escancaradas, euforia incontida. Jovens, mais jovens e mais jo-
vens aguardavam, num sábado matinal e chuvoso, para aprender o que são
estes escritores, membros de uma academia literária. Nenhum deles sabia.
Bandeiras da ALB | RS na sala, apresentação pronta no notebook, livros
dos Acadêmicos Imortais organizados, hino nacional tocado. Chegou a hora
dos escritores independentes mostrarem a cara! Realizamos um mergulho
coletivo profundo nas águas da piscina literária do qual só emergimos alerta-
dos pela fome do almoço.
Iniciei a apresentação. A cada minuto que passava, a confiança em
aprofundar os temas aumentava frente à receptividade inequívoca de estu-
dantes mais afeitos a espatifarem seus olhares contra as minúsculas telas das
redes sociais.
Aqui está uma marca indelével das caravanas a ser decifrada. Por que
estamos conquistando 100% (literalmente!) da atenção dos jovens? Os profes-
sores, tanto de Lajeado como de Cruz Alta, ficaram estupefatos com a con-
centração de seus alunos, praticamente inatingível nas aulas ordinárias e no
dia a dia escolar. Seria o tema, o método, o inusitado?
Nada é uma coisa só. O contexto é importante. Poderia arriscar con-
ceitualmente. O universo escolar é herança das gerações anteriores, geral-
mente percebido como estranho ao universo juvenil. A linguagem, os materi-
ais didáticos, as estruturas construídas e o relacionamento hierarquizado
conformam um guarda-chuva imposto. Já o ambiente das redes sociais tam-
bém é uma imposição social, porém com cara mais horizontalizada. Se al-
guém estiver fora de Tinder, Facebook, Whatsapp, Instagram, Snapchat ou
Twitter, será excluído de seu grupo social.
A juventude, com barquinhos feitos de pet, precisa navegar entre os
mares revoltos e as tempestades na escuridão, onde tubarões não são raros.
Os Acadêmicos Imortais da ALB | RS, inicialmente, parecem, ao longe, aque-
les de capas e chapéus de chuva, com lanternas cujas pilhas estão fracas e a
iluminação intermitente. Não se tem a certeza que virão iluminar e ajudar
no resgate.
Éramos uma incógnita.
A apresentação transformou-se num debate, com participação ativa de
estudantes e professores que, aos poucos, foram se entusiasmando com
aquele momento ímpar. Esquadrinhamos as livrarias da cidade: Lajeado tem
cinco livrarias, em comparação com a única livraria de Cruz Alta. Conversa-
mos sobre os títulos da leitura obrigatória do colégio. Ao citarem Clarissa, do
Érico Veríssimo, recordei da minha adolescência quando já era leitura obri-
gatória.
Autores clássicos de nossa literatura estavam mesclados com leituras
de celebridades e autoajuda na lembrança dos jovens de suas próprias leitu-
ras. Os professores afirmavam leituras qualificadas indicadas aos alunos em
diferentes matérias. Ficou a impressão de que o número superior de livrarias
de Lajeado estampava um maior cosmopolitismo. Assim como em Cruz Alta,
esta cidade alimenta outras academias e clubes literários, espaços propício
para o desenvolvimento da leitura e de novos escritores.
Enfim, a cada cidade por onde passa a Caravana Literária da ALB | RS,
vai se desvelando que a literatura gaúcha e nacional não cabem no atual
formato do mercado literário. As livrarias se apresentam tímidas e sem colo-
ração, apostando nos aparelhos eletrônicos e materiais escolares. E, por
mais que alguém compre livros pela internet, é sempre um ato solitário e
individual.
O mercado literário, hoje no Brasil, está sujeito a concentrar o fatu-
ramento nas obras de grande apelo midiático, com muitos reais investidos
em publicidade. A literatura genuína dos escritores brasileiros está pratica-
mente fora deste esquema comercial. Depende, fundamentalmente, da ação
direta de cada escritor. O projeto Caravanas Literárias da ALB | RS é uma
ação coletiva desta ação direta.
Os escritores independentes devem construir os caminhos de um mer-
cado literário, tendo como base a aproximação sistemática entre escritores e
leitores. Neste caminho, estimularemos a formação de novos escritores, re-
gando um círculo cultural virtuoso.
Estas elucubrações ficaram nas mentes e corações de escritores, pro-
fessores e alunos no egrégio colégio Castelinho. Porém, o show nem tinha
começado ainda. Chegou a hora da “prática”: os depoimentos e as declama-
ções dos honoríficos Acadêmicos Literários.
A sensação que fica é a formação de uma ponte concreta entre a re-
flexão sobre a literatura na sociedade e a exposição dos escritores como pes-
soas “de verdade”. São histórias de vida bem diversificadas, totens de inspi-
ração distintos, origens variadas que se encontram nas letras. Histórias muito
bonitas que representam a personalidade cultural de cada um.
Por fim, as declamações e leitura de textos refletem como espelhos
das mentes e corações uma literatura pujante, única em cada qual, concre-
tizando um casamento incomum entre história e cultura capaz de transfor-
mar a realidade.
Fica uma imagem muito forte para os lajeadenses, como foi para os
cruzaltenses. Há vida fora das veredas hegemônicas. Podemos fazer a nossa
trilha.
É possível constatar uma relação substanciosa entre as histórias de vi-
da que narram como cada um virou escritor e o temário e a plástica de cada
texto literário. Raiz, força, afeto, história e profundidade, em modos únicos
e incontornáveis. Faz parte da construção cultural de nossa história. As de-
clamações alçam voo dos livros para regozijarem no universo.
Com a conclusão, disponibilizamos os livros para todos. A acolhida foi
grande, consagrando aquele momento de “pop-star” dos Acadêmicos Imor-
tais. Vai brotando a esperança em nossos corações.
A caravana se despede do colégio e marcha eufórica para um delicioso
e merecido almoço, tendo como visual a belíssima Praça da Matriz e seu in-
defectível coreto. Brindes da alegria, os escritores sentem com profundidade
uma participação protagonista na história literária do Rio Grande do Sul.
Em meio ao deleite compartilhado, o coordenador local da caravana
nos brinda com um roteiro antológico que fez os escritores mergulharem nos
arquétipos de Lajeado. A catedral, a Casa de Cultura e a esplêndida Univates
apresentam o ímpeto e o rumo histórico da cidade. Alias, força facilmente
compreensível quando passeamos ladeando o caudaloso rio Taquari, infante
de um exuberante vale que modula toda a região.
Em meio ao alarido intenso das conversas dos escritores no retorno à
capital, pensava-se sobre o próximo passo: a Caravana Literária da ALB | RS:
Porto Alegre, em 17 de novembro de 2018, na 64ª Feira do Livro.
E la nave va!
Milton José Pantaleão Junior
Escritor e Editor da Alternativa
Presidente da Academia de Letras do Brasil | RS